Travessuras da menina má: uma volta ao mundo com Vargas Llosa

Tudo começou no Peru. Aos 15 anos, Ricardo tinha acabado de trocar as calças curtas por compridas. Ele vivia no tradicional bairro de Miraflores, em Lima – até hoje um bairro charmoso e que merece uma visita, caso você passe pela surpreendente capital peruana. “Ainda não havia edifícios em Miraflores, que era um bairro de casinhas de um andar ou às vezes dois, jardins com os infalíveis gerânios, as cidreiras, as buganvílias, o gramado e as varandas”, descreve o narrador de Travessuras da Menina Má, obra de 375 páginas que foi publicada em 2006.

Foi nesse Miraflores, do começo dos anos 50, que Ricardo viveu sua adolescência. Para deixar tudo ainda melhor, quem escreve é Mario Vargas Llosa, o mais importante escritor peruano, nome fundamental na literatura latino-americana e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 2010. E, não vamos nos esquecer, Vargas Llosa também foi um grande amigo de Gabriel Gárcia Márquez, até o dia em que um soco bem dado acabou com a amizade dos dois e deixou o colombiano com um olho roxo. Mas isso é outra história, que não pertence ao mundo da ficção, então voltemos ao Ricardo.

Vargas_Losa

Vargas Llosa

A única ambição daquele adolescente peruano era arrumar um emprego legalzinho que o permitisse viver, “da forma mais simples possível”, em Paris. No meio do caminho, no entanto, ele conheceu uma chilena. Ou uma menina que dizia ser chilena, a Lily.

“Quem dançava um mambo com ela sempre se saía mal. Como acompanhá-la sem se atrapalhar no turbilhão endiabrado daquelas pernas e pezinhos saltitantes? Impossível”. A tia do Ricardo completa a descrição, deixando claro que não foram só os adolescentes peruanos que se chocaram com a chegada da garota de fora: “Bem, não vamos esquecer que ela é chilena. E o forte das mulheres desse país não é a virtude.”

Ricardo se apaixonou por Lily e pediu a garota em namoro três vezes. Ouviu não das duas primeiras. E na terceira também, afinal, nas palavras da menina, “Para que ia dizer sim, se já parecíamos namorados do jeito em que estávamos?”

Miraflores, Peru

Bairro Miraflores, em Lima, já sem as casinhas de um andar (Foto: Mira4espina78y. CC, 2013)

Mas a chileninha era, na realidade, uma peruana pobre disfarçada de estrangeira para conseguir entrar no clube fechado que era a elite de Miraflores. A descoberta da farsa foi o fim da Lily. E o começo de outras personagens.

A vida seguiu, e, aos 25 anos, Ricardo já tinha alcançado seu grande sonho: vivia em Paris, trabalhando como tradutor para a Unesco. O ápice chegou rápido, mesmo para um rapaz que não tinha muitas ambições.

Mas a Lily, que nem se chamava realmente assim, tinha. E foi disfarçada, dessa vez de guerrilheira em escala para Cuba, que ela desembarcou em Paris. Ricardo nem se lembrava da falsa chilena mais, mas logo percebeu que aquela guerrilheira era uma fantasma de sua adolescência. Eles se envolveram, mas ela, que tinha muitas ambições para se contentar com uma vida comum em Paris, seguiu seu caminho até Cuba. Mesmo que sequer acreditasse na ideologia dos camaradas.

Ao longo das próximas décadas, a vida do Ricardo pode ser resumida como uma série de acontecimentos separados pela volta da menina má (ou niña mala, em espanhol). Ele é sempre atraído pelo magnetismo, pela força aventureira e pelo desejo de viver e de alcançar o infinito que tem a menina má. E ela sempre vai embora. Mas volta, cada vez com um nome diferente, com uma vida diferente, com um marido diferente. Ela é a Camarada Arlette, a Madame Arnoux, a Mrs Richardson e até Kuriko, mulher de um mafioso japonês. Ricardo suporta cada abandono, quase todos cruéis, se apaixona mais a cada ato da menina má, a ponto de dar raiva no leitor. Mas como não gostar da niña mala?

Da Europa, ele acompanha os movimentos que tentam implantar revoluções na América Latina, vê, mesmo que de longe, os eventos de Maio de 68 (“quando os jovens de Paris fecharam o Quartier Latin com barricadas e disseram que era preciso ser realista escolhendo o impossível”) e vive Paris do jeito que ele sempre sonhou: com uma vida comum. Numa cidade fora do comum.

No final dos anos 60, Ricardo passa uma temporada em Londres, que tinha se convertido na capital cultural do mundo. “Assim, como antes iam fazer a revolução em Paris, muitos latino-americanos emigraram para Londres e se alistaram nas hostes da cannabis, da música pop e da vida promíscua. Carnaby Street substituiu Saint Germain como umbigo do mundo. Em Londres nasceram a minissaia, os cabelos compridos e as roupas extravagantes”.

Travessuras da menina má

Carnaby Street, 1966. A rua foi o coração do movimento hippie (Foto: The National Archives UK, CC)

A cada país, Ricardo acaba se encontrando com a menina má. A volta ao mundo dos dois alcança até o Japão. “Vou levar você aos templos xintoístas, os mais bonitos de Tóquio. Em todos há animais soltos, cavalos, galos, pombos. São considerados sagrados, reencarnações. E visitaremos os templos zen budistas, com seus jardins de areia e pedras, que os monges limpam com ancinho e transformam todos os dias”, diz a menina má ao Ricardo, quando eles se encontram no Japão, já no começo da fase dos cabelos bracos.

Espanha e França ainda aparecem na história, que também tem outra passagem pelo Peru, quando Ricardo vai enfrentar suas origens. E entender as origens da mulher que o acompanha, mesmo nas frequentes ausências, durante toda a vida. E que no fim já gera tanta raiva quanto amor. “Pelo menos confesse que lhe dei um bom material para escrever um romance. Não foi?”, pergunta ela.

Foi.

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Imagem destacada: CristinaMuraca, Shutterstock.

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